sábado, 24 de agosto de 2013

AS PRIMEIRAS MULHERES CRISTÃS (2)




Uma família sem hierarquias

Assim, perante isto, situamo-nos no que se poderá chamar inversão do Evangelho. A ordem actual deste mundo imperioso, sexista, dominador sustém-se a partir da defesa de umas funções estabelecidas hierárquica e marginalizada: a imposição do pai sobre o filho, do homem sobre a mulher, do rico sobre o pobre, do bom sobre o mau, do saudável sobre o doente, etc. Pois bem, num gesto expressamente provocador, Jesus inverte esta estrutura de valores: chama bem-aventurados aos pobres, cura os enfermos, oferece o reino aos que são considerados pecadores por esta sociedade. A partir desse fundo é entendida a sua atitude para com as crianças.

Na ordem normal da sociedade, para defender o estabelecido (tradicionalistas, fariseus) ou para o derrubar pela força (revolucionários, zelotas[1]) as crianças interessam pouco ou são vistas como secundárias. Os que importam, os que valem, são os grandes, os poderosos, os triunfadores (em função da tradição ou da revolução). É, pois, contra isto, numa atitude verdadeiramente provocatória, que Jesus diz e mostra que o mais importante são as crianças: precisamente aqueles que estão nas mãos dos outros, que não têm força por si mesmos e se encontram à mercê dos demais no seu caminho. É evidente que aqui não importa o sexo (meninos ou meninas). Eles são importantes enquanto humanos e humanos com necessidades. Assim deve ser interpretado Mc 9, 33-37 e 10,13-15 que explica essa inversão central do evangelho [Chegaram a Cafarnaúm e, quando estavam em casa, Jesus perguntou: “Que discutíeis pelo caminho? Ficaram em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior.
Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.” E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes: “Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou.”] e [Apresentaram-lhe uns pequeninos para que Ele os tocasse; mas os discípulos repreenderam os que os haviam trazido. Vendo isto, Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos que são como eles. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele.”]

Nesta perspectiva de inversão messiânica adquirem importância especial junto das crianças, outro tipo de pessoas que estão necessitadas. No meu ponto de vista, são estes os mais patentes: os pobres face aos ricos, os doentes face aos saudáveis e os pecadores face aos justos. A atitude de Jesus com cada um destes tipos de pessoas é distinta; a sua criatividade e amor actua em cada caso de formas diferentes, Mas em todos se descobre um mesmo tipo de inversão ou mudança escatológica[2] na linha de Lc 1,51-53 e 6, 20-21 [Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias] e [Erguendo os olhos para os discípulos, pôs-se a dizer: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir”].

Este tipo de análise simplista poderia levar-nos a dizer que as mulheres aparecem ante Jesus na linha dos anteriores necessitados, formando, deste modo, uma espécie de classe especial de oprimidos (conjuntamente com as crianças, os pobres, os enfermos e os pecadores). Por isso haveria que amá-los de forma peculiar, num gesto de protecção bondosa e, no fundo, escravizante: deveríamos amar as mulheres de um modo condescendente como a seres humanos (o que não acontecia nesse tempo). Pois bem, contra isso, Jesus ama-as (escuta-as, acolhe-as e dialoga com elas) como com pessoas livres, capazes de entender e de acolher todo o Evangelho de Deus, de igual forma que os homens. De certa forma elas encontravam-se mais subordinadas do que os homens, e nos gestos e palavras de Jesus pode encontrar-se um cuidado especial em valorizá-las.

Jesus não se ocupou das mulheres em especial.

Mas, em geral, devemos acrescentar que Jesus não se ocupou delas somente com uma atitude de compaixão, como um superior se ocupa dos seus inferiores. Jesus respeita-as e valoriza-as num plano de igualdade pessoal, como o dos homens. Recordemos alguns textos e tradições:

– Jesus percorre os caminhos com homens e mulheres, demarcando-se, assim, dos rabinos de Israel que somente acolhiam homens. No entendimento dos rabinos as mulheres eram incapazes de entender a Lei e de explicá-la. Este facto é perfeitamente compreensível numa sociedade patriarcal onde só os homens se encontram socialmente “libertos” para o “lazer” da lei, para o estudo das Santas Escrituras. Pois bem, Jesus não quis instaurar um movimento de letrados, especialistas na ciência sagrada. Busca o mundo novo do “homem” (ser humano) libertado para o reino. Para isso valem igualmente os homens ou as mulheres. Ambos aparecem como iguais perante os dons de Deus e da Sua Graça. Por isto mesmo as mulheres podem segui-lo – e seguem-no – como membros de pleno direito dentro do seu grupo. Jesus não fundou uma escola de especialistas homens que se isolam para o cultivo da lei; Ele ensinou numa espécie de universidade aberta, na escola superior onde homens e mulheres, crianças e maiores, podem escutá-Lo, entendê-Lo e segui-Lo.

– Naquela sociedade patriarcal (em sentido familiar, social e religioso) Jesus condena principalmente o pecado próprio dos homens. À luz do Evangelho é claro que são principalmente os homens com espírito patriarcal \quem recusa mais a Deus, opondo-se ao “direito e graça” dos pobres. Neste sentido mais profundo, podemos afirmar que Jesus veio para destruir as obras do homem (não as da mulher, como foi entendido mais tarde numa interpretação gnóstica). Praticamente são sempre as obras do homem patriarcal (orgulhoso, dominador) as que impedem a chegada do reino. Mas, ao lado desses homens opressores há outros que se encontram oprimidos; também a eles Jesus Cristo oferece o reino.
– Finalmente, Jesus parece haver situado num mesmo plano de opressão e debilidade de homens e mulheres, ao vincular o seu gesto de perdão tanto a cobradores de impostos como a prostitutas (Mt 21,31) [“Qual dos dois fez a vontade ao pai?” Responderam eles: “O primeiro”. Jesus disse-lhes: “Em verdade vos digo: Os cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder-vos no Reino de Deus”]. Uns e outros pareciam obrigados a vender o seu corpo (mulheres) ou a honestidade económica (homens) ao serviço de uma sociedade machista que os oprime e utiliza para, seguidamente, os desvalorizar. Os grupos que se encontram ligados a Jesus por uma mesma situação de pecado social; os dois estão unidos a um mesmo caminho de graça, aberto a Deus que os perdoa e os acolhe.

Nesta perspectiva descobrimos o que poderia chamar-se a soberania do Evangelho. Certamente, Jesus não é um reformador social que aceita em parte o que existe para mudá-lo depois ou melhorá-lo. Os reformadores pactuam sempre porque querem partir de algo “bom” (forte) que já existe; desta forma, acabam por ser revendedores, legalistas, distinguindo o que se deve aceitar e o que se deve rejeitar. Jesus, pelo contrário, actua como profeta escatológico: não se pôs a reformar o mundo para o melhorar; Não se ocupa a mudar detalhes; anuncia algo mais profundo, mais definitivo, no fim do mundo velho. Isto situa-nos no centro do Evangelho. Para dizer, na terminologia de Mc 2,18-22; Jesus não vem remendar com um pano novo o velho manto israelita; para isso não lhe vale o odre velho da lei para pôr ali o seu vinho novo. Como enviado escatológico de Deus, anuncia o fim do mundo velho, oferecendo já os sinais e os princípios do seu reino, em atitude de nova criação (Mc 2,18-22) [Estando os discípulos de João e os fariseus a jejuar, vieram dizer-lhe: “Porque é que os discípulos de João e os dos fariseus guardam jejum, e os teus discípulos não jejuam?” Jesus respondeu: “Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com eles? Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar. Dias virão em que o esposo lhes será tirado; e então, nesses dias, hão-de jejuar.”
“Ninguém deita remendo de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os odres. Mas vinho novo, em odres novos”].


(Continua)



[1] O termo zelota ou zelote significa literalmente alguém que zela pelo nome de Deus. Apesar da palavra designar nos nossos dias alguém com excesso de entusiasmo, a sua origem prende-se ao movimento político judaico do século I que procurava incitar o povo da Judeia a revoltar-se contra o Império Romano e expulsar os romanos pela força das armas, que conduziu à primeira guerra judaico-romana (66-70).
[2] Relativo à escatologia – Teoria acerca das coisas que hão-de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do mundo e da humanidade.

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